José Lindomar Coelho Albuquerque, doutor em Sociologia pela UFC, membro do Observatório da Tríplice Fronteira e do Grupo de Pesquisa “Fronteiras, Estado e Relações Sociais. Coordenador do Grupo de Pesquisa Laboratório de Investigação em Migrações, Nações e Fronteiras (LIMINAR) na UNIFESP. Entrevista cedida a Lucas Prado, acadêmico do segundo ano do curso de graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE)
L. P – Visando uma possível relação entre a vida docente e a de pesquisador, como vê essa combinação entre as atividades e quais os pontos de cada área é possível utilizar na outra?
J.L - universidade pública ainda possibilita que possamos ser docentes e pesquisadores e essa combinação é muito importante para o desenvolvimento da docência e da pesquisa, ainda que essas áreas tenham suas particularidades. A pesquisa tem com centro a aventura da descoberta e o labirinto laborioso de estabelecer conexões entre teorias e dados empíricos que vão pouco a pouco adquirindo contornos mais precisos. Já na docência é central a transposição didática, isto é, fazer com que um determinado conteúdo seja ensinado de maneira clara conforme o nível de aprendizado dos estudantes. No meu caso, essa combinação entre ensino e pesquisa ocorre mais diretamente na disciplina eletiva Fronteiras e mobilidades, uma vez que se trata de uma discussão teórica que tenho utilizado em minhas pesquisas e a discussão em sala de aula alimenta possibilidade de pesquisas futuras.
L.P – Com relação a passagem pelas universidades espanholas, é possível notar e relatar um ou mais métodos de pesquisa ou ensino que se utilizam no exterior e não no Brasil ?
J.L – Estive em dois momentos em estágios pós-doutorais em universidades espanholas. A primeira vez foi um período mais curto (5 meses) entre 2010 e 2011 e o diálogo principal foi com o professor e antropólogo José M. Valcuende del Río na Universidade Pablo de Olavide, em Sevilha. Nesse período não tive oportunidade de dar aula e os métodos e técnicas de pesquisa que discutimos eram semelhantes aqueles utilizados pela sociologia e antropologia brasileira, particularmente os métodos qualitativos. O segundo período, entre 2015 e 2016, foi um período de 11 meses em diálogo com a supervisora María Lois, mas também com os professores Heriberto Cairo, Almudenas Cabezas, entre outros, e de realização de pesquisa nos jornais locais sobre os territórios em disputa de Ceuta e Gilbraltar. Nesse período tive a oportunidade de ministrar uma aula na graduação e no mestrado e o que percebi de diferente na graduação é uma divisão mais clara entre aula teórica e aula prática. Uma aula para expor o conteúdo e a outra para trabalhar de maneira mais direta a leitura de um texto, um documentário, um exercício e assim por diante.
L.P – Quais indicações bibliográficas para um graduando que esta iniciando seus interesses na área de Fronteiras?
J. L – A indicação de textos clássicos e contemporâneos sobre o estudo de fronteiras em diferentes sentidos, não somente sobre territórios de fronteiras internacionais. Nesse sentido, indicaria inicialmente O significado da fronteira na história americana, de Frederick Turner, Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano, de José de Souza Martins, Os grupos étnicos e suas fronteiras, de Fredrik Barth, Imigração ou os paradoxos da alteridade, de Abdelmaleck Sayad, A obsessão por fronteiras, de Michel Foucher, Borderland/La fronteira ou algum outro texto traduzido de Glória Anzaldua, além de indicações mais específicas da nova geração de pesquisadores que estudam as fronteiras territoriais no Brasil e na América Latina. As fronteiras internacionais na América Latina, mas também em outros lugares, são realidades de sobreposição de diferentes fronteiras. Os estudos sobre as fronteiras migratórias, étnicas, de frentes de expansão ajudam a compreender os territórios de fronteiras internacionais em sua complexidade de agentes e de experiências históricas que fazem parte da formação destes territórios entre Estados nacionais.
L.P – Qual a importância dos Brasiguaios nas eleições brasileiras? Na atual eleição qual o peso que esse grupo em específico representa democraticamente?
J. L – Os denominados brasiguaios formam uma realidade bastante heterogênea entre os territórios paraguaio e brasileiro. A primeira a vista poderíamos dizer que os brasiguaios são pessoas de origem brasileira que vivem ou viveram uma experiência migratória no Paraguai, assim com os descendentes destes brasileiros que já nasceram no país vizinho. Nem todo brasileiro que mora ou morou no Paraguai recebe essa classificação. Essa nomeação é mais direcionada para esse amplo fluxo migratório de origem rural e familiar que transformou bastante os departamentos paraguaios fronteiriços com o Brasil na segunda metade do século XX e início do século XXI. Além disso, o termo brasiguaio é uma palavra em disputa, muitos brasileiros que vivem no Paraguai não gostam de ser chamados por este nome, preferem ser brasileiros ou paraguaios conforme as situações e as relações em jogo. Entretanto, o termo é bastante usual e naturalizado nas instituições educativas, de saúde e na política local nos municípios fronteiriços brasileiros. Vereadores e deputados em Foz do Iguaçu, por exemplo, se elegem graças aos votos dos chamados brasiguaios que se encontram do outro lado do limite político. No “tempo da política” no Brasil é comum observamos candidatos se deslocando e fazendo promessas nas localidades de maior concentração de brasileiros e seus descendentes no interior do Paraguai. Nesta eleição de 2018 não tenho dados sobre a maneira como votaram os eleitores brasileiros que vivem no Paraguai. Acredito que continuou o padrão de 2014: um voto cada vez mais conservador e semelhante a regiões brasileiras de expansão do agronegócio. Nem todos esses eleitores “brasiguaios” apoiam o regime democrático. Há, inclusive, alguns grandes comerciantes e fazendeiros de origem brasileira que defendem a volta do regime militar no Brasil e enfatizam o lado positivo da ditadura no Paraguai e no Brasil.
L. P – Olhando para o grupo de migrantes que vão do Brasil para o Paraguai ou em suas redondezas, é possível notar que essas pessoas fazem parte de uma classe com baixo poder econômico e político?
J. L – Os migrantes brasileiros no Paraguai pertencem a todas as classes sociais, são de diferentes origens regionais e étnicas e podem falar em português, espanhol, italiano, alemão e alguns termos em guarani, conforme suas origens migratórias no Brasil e o grau de inserção cultural e linguística no país vizinho. Entretanto, o que predomina no Paraguai são brasileiros e descendentes pobres, brancos e de origem sulista, ainda que essa realidade possa ser diversa por local de colonização nos munícipios paraguaios de maior concentração de brasileiros, sobretudo nos departamentos de Alto Paraná e Canindeyú.
L. P – É viável a possibilidade de que os pontos intermediários da corrente migratória dos gaúchos (Santa Catarina e Paraná) servem em parte para uma aproximação do seu destino e ainda uma capitação de renda para seguir o destino e visam ainda uma aproximação cultural?
J. L – A migração transfronteiriça de brasileiros para o Paraguai é derivada de dois grandes fluxos de migrações internas no Brasil: a migração nordestina e mineira em direção a São Paulo, Paraná e Mato Grosso do Sul e a migração gaúcha em direção a Santa Catarina, Paraná e Mato Grosso do Sul. São migrações que fazem parte geralmente dos movimentos das frentes de expansão agrícola nestes estados (mate, menta, café, etc). Estes deslocamentos intermediários são impulsionados, por um lado, pela lógica de concentração da propriedade da terra e expulsão daqueles que vivem de arrendamento ou que tem uma pequena propriedade, por outro, pela esperança de encontrar novos campos de oportunidades que possam mudar de vida em novas áreas de exploração mais adiante. A cada geração uma nova migração e assim, por diferentes razões, terminaram entrando em terras paraguaias. É importante também destacar que houve incentivos da ditadura de Stroessner (1954-89) para que parte destes imigrantes fosse para o Paraguai e desenvolvesse uma agricultura moderna e rentável. As facilidades foram variadas: terra mais barata, menos tributos, facilidades de financiamento etc. Em cada deslocamento no interior do Brasil e também no Paraguai estes migrantes entram em contato com pessoas de outras origens, sotaques, línguas, valores e assim ocorreram tanto estranhamentos, estigmas e diferenciações, mas também formas de aproximação cultural, como aquela expressa na fala em portunhol e no costume de tomar o tererê nas tardes quentes das terras paraguaias.
L. P – É notável vermos no Brasil o embate entre as pessoas que aqui residem e os estrangeiros, caso notável é o que viveram os Venezuelanos ao chegarem em Roraima, como os Brasiguaios se organizam ou criam estratégias para ter acesso a direitos sociais básicos a sobrevivência, exemplo de saúde e educação publica?
J. L – Os brasileiros e seus descendentes que vivem no Paraguai, especialmente os mais pobres, buscam bastante alternativas de saúde e educação em território brasileiro. A origem dessas pessoas e a proximidade territorial favorecem muito estes pequenos deslocamentos impulsionados pela lógica da fronteira enquanto realidade assimétrica. Do lado paraguaio da fronteira existe um Estado com menos garantias sociais e com um sistema educacional e de saúde relativamente mais precário que no Brasil. Do lado brasileiro da fronteira temos ainda um Sistema Único de Saúde (SUS) público e universal e uma educacional pública com boas notas nas avaliações nacionais, como é o caso do município de Foz do Iguaçu. Estas desigualdades e diferenças entre territórios vizinhos impulsionam diversas táticas de travessia e busca por melhores serviços públicos. No caso da saúde, é constante as reclamações dos prefeitos, secretários, funcionários dos municípios fronteiriços que afirmam que os recursos públicos para a saúde são repassados conforme o número de habitantes e as políticas públicas não levam em conta a singularidade destes municípios, uma vez que uma quantidade expressiva de pessoas que vive do outro lado do limite político atravessa a fronteira e termina sobrecarregando o atendimento à saúde nessas localidades. Essas realidades fronteiriças podem ser muito diversas em outras fronteiras brasileiras, como aquela entre o Brasil e a Guiana Francesa. Ali é mais comum o movimento de brasileiros em direção aos benefícios sociais do Estado francês. De forma resumida, podemos dizer que atualmente na fronteira Brasil-Paraguai, por um lado, o Estado brasileiro (União, Estado, Município) atrai predominantemente fluxos transfronteiriços de paraguaios e brasiguaios que vivem no país vizinho. Por outro lado, o mercado paraguaio também impulsiona um conjunto de outros deslocamentos em sentido contrário (cursos educacionais, consultas e exames médicos mais baratos, menos tributos na instalação de empresas no país vizinho, salários melhores ou maior oferta de emprego no comércio transfronteiriço conforme o contexto econômico e político, etc.). Essa realidade pode se transformar bastante nos próximos anos, com o anuncio de políticas neoliberais a serem implementadas no Brasil pelo novo governo, piorando a situação da saúde e educação públicas e tornando mais vulnerável a situação dessas populações transfronteiriças.
L. P – Levando em consideração a migração de paraguaios ao Brasil ou vice e versa, como se dá a construção das relações de poder entre os países e por vezes o tratamento que cada nacionalidade dispõe ao imigrante como Estado?
J. L – Costumo lembrar de uma frase de Abdelmaleck Sayad que afirmava que o imigrante, de certa forma, carrega o status do país de origem. As migrações revelam a geopolítica de poder entre as nações. O autor formula isso pensando especialmente na migração argelina, ex-colônia francesa, na metrópole francesa. No caso entre o Brasil e o Paraguai, embora sejam duas nações periféricas com passados coloniais, o Brasil adquire status relacional de potência em muitos aspectos. Durante minha pesquisa de campo no Paraguai, escutei de interlocutores paraguaios frases que apontavam para um entendimento do Brasil como mais desenvolvido, mais rico, imenso territorialmente, potência sul americana e país imperialista. Os migrantes brasileiros no Paraguai, especialmente os mais ricos, pertencem ao polo dominante da relação de poder e tratam muitos paraguaios como subalternos em seu próprio país. Já os migrantes paraguaios no Brasil sofrem com mais facilidade preconceito de origem e ocupam geralmente posições subalternas nas relações de trabalho e em outros âmbitos sociais.
L. P – Lendo o texto “As fronteiras ibero-americanas na obra de Sérgio Buarque de Holanda” nota se a passagem onde se refere a ponte como, (uma criação humana que consegue unir o que a natureza havia separado), além desta característica citada é notável um avanço econômico sobre a ponte com fundamento no turismo? e as cidades próximas a fronteira como local de hospedagem para estrangeiros que se interessam pela cultura local?
J. L – A minha tendência nos estudos de fronteira foi sempre estabelecer um diálogo entre teorias clássicas e contemporâneas da área de Ciências Sociais e os estudos específicos de fronteira. Como tenho interesse pelo denominado pensamento social brasileiro, também busco dialogar com as concepções de fronteiras presentes nos autores brasileiros. Nesse artigo específico busco justamente pensar diferentes sentidos de fronteira (como área de transição; frente de expansão; diferença de colonização e processo de urbanização/modernização) na obra de Sérgio Buarque de Holanda. O artigo que me inspirou, e serviu como ponto de partida, foi um breve ensaio de Georg Simmel sobre A ponte e a porta compreendidas como metáforas para pensar diversos processos sociais. Embora tenha uma preocupação em compreender as fronteiras fundamentalmente como realidades territoriais concretas e dinâmicas, não abandono o uso de metáforas mais amplas para pensar as fronteiras para além de seus campos semânticos específicos. As metáforas servem aqui como insights, campos de experimentação para aventuras empíricas e sobrevoos teóricos. Nesse caso, a ponte pode ser vista tanto como uma realidade concreta que liga dois ou mais territórios nacionais, como a Ponte da Amizade entre o Brasil e o Paraguai ou uma rua entre Chuí (Brasil) e Chuy (Uruguai), mas também tudo aquilo que aproxima realidades sociais e culturais descontínuas (formas de transporte e comunicação, processos migratórios, apropriações e ressignificações culturais, etc.). Muitas regiões de fronteiras são pontes de atração de migrantes, negócios e de turismo. Podemos dizer que são áreas de densidade-mundo ou fronteiras-mundo, uma vez que temos numa região urbana com essa formada entre o Brasil, o Paraguai e a Argentina variados processos migratórios de diferentes continentes, mercadorias de várias origens e indo para vários destinos, turistas que visitam as Cataratas, Itaipu e o comércio paraguaio vindo de diferentes países, entre outros processos interligados. Mesmo aquilo que simboliza a divisão entre os países, como o marco das três fronteiras, pode se constituir em mais um dos elementos de atração turista e geração de novos negócios. Mas a ponte não só une, também separa e estabelece controles desiguais. No caso específico da ligação internacional sobre o rio Oiapoque entre a cidade de Oiapoque (Amapá-Brasil) e Saint George de L’oyapock (Guiana Francesa – França), a ponte pode indicar um ponto de encontro entre a União Europeia e o Mercosul, entre um estado periférico do Brasil e um território colonial francês do ultramar, mas também, de uma maneira muito concreta e cotidiana, um sentido de travessia para os guianenses que passam sem nenhuma fiscalização e controle para o lado brasileiro e um sentido de barreira para os brasileiros que são barrados logo depois da ponte em um posto de fiscalização da polícia francesa. As assimetrias entre os territórios nacionais indicam as direções das pontes e das barreiras em uma mesma realidade construída sobre um rio internacional. A título de conclusão, podemos dizer que as realidades fronteiriças são paradoxais, dinâmicas, heterogêneas, geralmente desiguais, as vezes territórios de exceção que concentram múltiplas violências e brutalidades cotidianas. Mas também são janelas privilegiadas para observarmos bem de perto cenas importantes do mundo contemporâneo.
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