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Entrevista com Erneldo Schallenberger


Erneldo Schallenberger, mestre e doutor em História pela PUC/RS, pós-doutorado em História pela UFPR, membro do Comitê Assessor da Área de Ciências Sociais, Humanas e Jurídicas da Fundação Araucária – PR e sócio convidado do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico do Paraná. Entrevista cedida a Clayton de Souza Góes, acadêmico do terceiro ano de graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).


Clayton Góes – Como se deu sua introdução na área das ciências sociais?

Erneldo Schallenberger – Minha formação é eclética e tem muito de autodidatismo. Fiz os estudos clássicos e depois ingressei na Filosofia, nos Estudos Sociais e na História, em nível de graduação. Fiz especialização em Fundamentos das Ciências Sociais e em História do Brasil. Meu mestrado foi na área da História da Cultura Brasileira. O Doutorado em História, com Pós-Doutorado em História, Cultua e Poder. Sempre fui historiador, mas estabeleci interface com a Antropologia e com a Sociologia. Por esta razão passei a me dedicar, também, à Etnologia e à Etnografia. Desta forma, a Sociohistória me aproximou das Ciências Sociais, embora seja uma vertente pouco explorada nos estudos acadêmicos.


C. G – Quais questões de ordem cotidiana, ou pessoal, o motivou e o manteve permanente no estudo das temáticas do associativismo cristão e missões jesuíticas?

E. S – A formação humanística, a vivência e a trajetória em uma comunidade de imigrantes alemães, a atuação como educador cooperativista e a busca de raízes genuinamente latino americanas para entender e conceber um novo estatuto social para uma América Latina historicamente dominada e sangrada gestaram em mim indignação e motivação para dedicar às temáticas dos meus estudos.


C. G – Enquanto estudioso e professor da área das ciências sociais, como você relaciona o associativismo cristão com a sociologia clássica (Marx, Durkhéim e Weber)?

E. S – O associativismo cristão emergiu num período de grandes transformações sociais motivadas pela crise das relações entre capital e trabalho decorrentes do capitalismo industrial, sobretudo a partir da metade do século XIX. A exploração extremada dos trabalhadores e a progressiva concentração dos meios de produção e da renda promoveram revoltas sociais. Marx apreendeu bem esta realidade e promoveu a formulação de um novo estatuto social, o socialismo. A complexa realidade social da época foi tomada de dois estatutos sociais antagônicos: o liberal capitalista e o socialista. No seio da Igreja, tanto católica quanto evangélico-luterana, iniciou-se uma grande discussão, baseada nos fundamentos humanos da fraternidade cristã, na solidariedade e na cooperação. Contra a exagerada concentração da renda e da propriedade e contra o fim da propriedade individual, o associativismo cristão passou a defender a função social da propriedade, mantendo-a com espaço de liberdade, de produção e reprodução da vida familiar e do desenvolvimento das comunidades, entendidas assim no seu contexto histórico. Em lugar do individualismo e do coletivismo insistiu que eram as relações de cooperação que poderiam trazer um novo equilíbrio para a sociedade. Este novo estatuto social teve, de algum modo, inspiração na experiência missioneira dos jesuítas com os índios guaranis nos séculos XVI e XVII e foi formalizado pelas encíclicas Rerum Novarum e Quadragésimo Anno. Marx não ficou alheio à experiência das missões jesuítico guaranis. Durkheim e Weber são contemporâneos a estas grandes discussões que buscavam novas fronteiras para o entendimento da dinâmica social e da formulação de novas bases societárias.


C. G – Quais foram as suas principais dificuldades no desenvolvimento geral de suas pesquisas?

E. S – Das inúmeras dificuldades destacam-se:

O tempo físico, onde a intensidade de atividades formais não faziam sobrar espaço para a pesquisa;A falta de apoio institucional, ou pela ausência de políticas, de recursos e de espaços institucionais;O restrito interesse acadêmico, uma vez que as linhas de pesquisa não tinham aderência aos cânones ditados pelas vertentes dicotômicas e ortodoxas dos modelos do capitalismo e do socialismo, que não abriam, e ainda não abrem, possibilidades para a discussão do Estatuto Associativismo Cristão. As dificuldades de acesso a arquivos, documentos e centros de estudos, ainda mais num tempo em que a informatização não estava incrementada.


C. G – Cite alguns pontos principais da história das “missões” que contribuem para a compreensão do amplo conceito de fronteira.

E. S – Recentemente foi publicada uma entrevista minha na Revista do Instituto Humanitas, Nº 530, Ano XVIII, de 16/10/2018, sob o título “Processos migratórios dos séculos XVI e XVII” onde estabeleço uma relação entre o contato entre civilizações e a desnaturalização dos povos tradicionais.

No processo da conquista da América, antes mesmo do estabelecimento das fronteiras coloniais, foram se gestando fronteiras culturais, étnicas e sociais. Contribuíram grandemente para tal os jesuítas, os cartógrafos e os viajantes que foram mapeando a diversidade sociocultural e as fronteiras simbólicas dos povos nativos nas suas diferentes territorialidades. O contato entre os europeus e os índios colocou em evidência o problema da fronteira do humano, do Eu e do não-Eu, isto é: o problema do não reconhecimento da alteridade. Este problema crônico, mesmo que relativizado com o reconhecimento do outro enquanto alguém inferior (menoridade) permanece até hoje como um câncer que devora as populações tradicionais e as desprovidas de auto-estima, de trabalho e de renda. As missões, embora tivessem imposto aos índios um modelo societário próximo do associativismo cristão, organizaram e constituíram um espaço social e cultural singular, combinando elementos da cultura tribal com a eurocristã, que transcendeu as fronteiras coloniais e moldou uma fronteira sócio-política prenhe de uma sociedade genuinamente latinoamericana. É uma utopia que merece estar presente nas discussões contemporâneas sobre o futuro dos povos da América Latina.


C. G – Como significar os conceitos de fronteira e violência a partir das disputas socioculturais que envolveram as missões jesuíticas e os povos nativos brasileiros?

E. S – A complexidade da temática nos sugere problematizar a questão um pouco mais. A violência é um fenômeno decorrente do não reconhecimento da alteridade e da diversidade cultural. A imposição de padrões culturais e de valores e práticas sociais já por si só desenha uma fronteira que fixa e ao mesmo tempo destrói marcos de referência para as possibilidades e os limites do modo de ser de cada grupo étnico e/ou cultural. Isto tudo gera conflitos que marcam a trajetória social dos grupos. Nas missões houve certa renúncia a alguns padrões europeus e aceitação de elementos indígenas para tornar possível a convivência de culturas tão diferentes. Isto não significa que não houve conflitos e que com isso os índios deixassem de ser índios para se tornarem cristãos. Deixaram isto sim de serem menos índios. A cruz e a espada são símbolos que indicam a fronteira da conquista não só territorial, mas, sobretudo, social e cultural. Tal como surpreendidos pelos mecanismos da conquista colonial, os povos nativos brasileiros se defrontam hoje o avanço do capital que torna cada vez mais incertos os seus territórios e o seu modo de ser.


C. G – Qual a importância da transposição das formas de associação privilegiadas pelo “social catolicismo” para as culturas brasileiras nativas?

E. S – Há uma necessidade premente de se discutir e formular políticas que redefinam o lugar das populações indígenas na sociedade. Primeiramente deve-se reconhecer e respeitar a diversidade cultural dos povos nativos. Eles também são diferentes entre si. Não podemos reduzi-los a mesmidade. São diferentes culturas que têm seu modo próprio de se relacionar com o espaço, com a natureza e seus mitos. Elas mesmas terão que produzir a sua espacialidade, conquanto lhes seja garantido um território. Como os processos globalizantes não inocentam ninguém, é salutar se pensar em mediadores sociais, altamente preparados, para facilitar a sua organização sócioprodutiva, visando a sua sustentabilidade, sem desnaturalizar a suas culturas. Nada de transposição das formas de associação. O social catolicismo foi um estatuto social alternativo ao capitalismo e ao socialismo numa temporalidade e espacialidade específicas. As sociedades tribais não se enquadram nesta discussão. Necessitam de formulações também específicas, distantes de ideologias e de religiões fundadas em dogmatismos. Recuperar formas coletivas de produção da vida e da cultura e estimular a agregação dos núcleos familiares são mecanismos que podem ser projetados a partir do modo de ser dos povos nativos.


C. G – Quais as principais contribuições da concepção cristã de mundo e seu ideal comunitário para a formação da “cultura associativista” dos brasileiros?

E. S – Os fundamentos estão na fraternidade cristã e na mesmidade em Cristo. O princípio do humanístico do associativismo está fundado na ajuda mútuo e no esforço coletivo para a superação de obstáculos individuais. “Quem pede ajuda é porque está disposto a ajudar”, dizia Reiffeisen, fundador do cooperativismo de crédito. Certamente o desafio dos brasileiros está na recuperação da sua autoestima e na descoberta da alteridade dos pares que constituem a nação brasileira. Descobrir o outro e ser solidário com ele; sonhar e cultivar o sonho de ser brasileiro, isto é, construir uma identidade, formular um projeto de nação; e, organizarem-se em associações, sindicatos, cooperativas são pequenos passos que devem ser ensaiados, sobretudo a partir da família, da escola, da universidade e de outras formas de agrupamento humano.


C. G – Você acredita que as atuais configurações sociais das tribos brasileiras e seus limites fronteiriços (econômicos, políticos, jurídicos, culturais) são fortemente condicionados pelas influências da exploração europeia? Discorra.

E. S – Obviamente. Remeto novamente à entrevista referida na quinta pergunta. Os padrões de família, de sociedade e de cultura presentes em nosso cotidiano remontam a esta herança histórica. Estes padrões são até hoje reproduzidos na escola, na universidade e nas práticas sociais. Temos receio de quebrar paradigmas, sob o risco de sermos taxados como não ilustrados, retrógrados. Buscamos diuturnamente padrões de modelos pessoais e sociais que não atentam para as nossas particularidades e potencialidades e, muito menos, consideram o tempo e o espaço que poderíamos viver e que outros viveram por nós.


C. G – Quais fontes embasam suas pesquisas relativamente às missões jesuíticas para compreender a questão indígena hoje?

E. S – As missões jesuíticas, além dos monumentos, estão cercadas por um riquíssimo patrimônio material constituído por arquivos espalhados pelo mundo inteiro, obras de arte, partituras, leis, constituições, ordenações, cartas e livros. É um acervo ainda não esgotado. Minhas pesquisas tiveram motivação especial a partir das visitadas de campo às populações guaranis do Paraguai, para melhor entender a sua cultura, aos monumentos (ruínas, museus) e das leituras de obras básicas e de referências teóricas sobre a temática. Embasei-me fundamentalmente nas cartas jesuíticas, nos documentos oficiais da época, tanto de Roma quanto dos impérios coloniais, encontrados, sobretudo, no Arquivo Jesuítico de Roma, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, na Biblioteca e no Arquivo de Buenos Aires, nos museus de Assunção e no Instituto Anchietano de Pesquisas da UNISINOS. Fui privilegiado também com o fornecimento de materiais por colaboradores da Alemanha, da França, de Portugal e da Itália. Muitas fontes de pesquisa foram franqueadas pelos participantes dos Simpósios Nacionais de Estudos Missioneiros, que coordenei da 1ª a 10ª edição, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Dom Bosco, Santa Rosa – RS, e dos colaboradores das Jornadas Internacionais sobre as Missões Jesuíticas, das quais sou membro fundador.


C. G – Você considera que as contribuições atuais das ciências sociais sobre fronteiras iluminam questões relativas aos estudos sociais e históricos que já produziu ou que ainda faz?

E. S – Houve avanços importantes como existem grandes desafios a serem superados, sobretudo quando se trata de questões relativas às fronteiras culturais nos territórios simbólicas dos povos nativos. Há certo reducionismo que não associa a fronteira cultual ao território simbólico, o que faculta o entendimento que certos espaços colonizados contemporaneamente possam ser considerados vazios ou sertões.


C. G – A partir de suas leituras e observações mais recentes sobre o fenômeno da globalização, opine sobre as condições atuais dos povos brasileiros nativos com relação à temática do conflito sociocultural.

E. S – Veja a entrevista relacionada anteriormente. Do fenômeno da globalização resulta uma onda de padronização de costumes, de hábitos de consumo e de modelos de produção guiados pelo grande mercado capitalista que, quando não incorpora as populações nativas e tradicionais como produtos de consumo às reduz à subculturas marginalizadas ou excluídas.

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